1.10.20

Quarentena

 Edward Hopper-Room in New York



    Depois de nove dias de confinamento, eu quase posso dizer que já não a suportava mais, pouco antes de precisar dividir a mesma casa, confinados e durante tempo indeterminado, eu já estava considerando a separação, haviam sido sete longos anos, os primeiros três anos foram ótimos, os dois seguintes foram quase indiferentes e os dois últimos foram anos que talvez, eu oculte das histórias que contarei no futuro.


    Ela caminhava de lá pra cá, mais especificamente para os cômodos onde eu não estava, havia se tornado uma rotina programada, se eu estava na cozinha, ela ia para sala, se eu ia para sala, ela ia para o quarto e se eu ia para o quarto, ainda que fosse para dormir, ela achava que era uma hora conveniente para fazer uma boquinha na cozinha.


    Aquilo aos poucos ia me enfurecendo, da minha parte tinha apenas uma certa indiferença com relação a ela, depois de certo tempo, eu não sorria mais ao ver ela chegar ou passar por mim; mas da parte dela, eu quase podia sentir um nojo nos olhos dela, como se ela quisesse me afastar de qualquer forma, eu me sentia muito mal ao ter ela por perto, pois eu sentia os olhos dela sobre mim, ou sem sentir vontade de colocar eles sobre mim.


    A impossibilidade de poder ter a atenção dela quando eu procurava me comunicar com ela me deixava frustrado, em soma, a forma absurdamente ríspida com o qual ela se referia a mim me enfurecia absurdamente.


    Durante um café da manhã, eu fiz uma tentativa de me comunicar, comentei sobre um filme que havia assistido quando fui deitar, filme esse que ela não viu pois estava na cozinha, falando com alguém… Ela simplesmente disse que não gosta dos filmes que passam naquele horário daquele canal, algo um tanto amplo na minha opinião, podia dizer apenas que não gostava do filme em questão, mas a resposta já anulava toda e qualquer opção de conversa. Dito isso, ela tomou um grande gole de café e disse que precisava ir à farmácia… Ela não precisava, eu havia ido no dia anterior, antes que eu tivesse feito essa consideração em minha cabeça, ela já havia saído porta à fora, eu não consegui terminar o café, joguei fora a metade de um pão e uns três dedos de café com leite.


    Aquilo havia sido uma mistura de frustração e raiva, de fato, eu só joguei aquele pingado fora, pois não consegui quebrar a caneca a apertando-a movido pela raiva. Respirei fundo e tentei ir para o sofá descansar um pouco. Com pouco mais de uma hora, ela voltou com uma sacola com algumas compras, pão de forma e alguns frios, nada que devesse vender em uma farmácia. Olhei para a sacola e levantei os meus olhos para ela, como se quisesse dizer bem próximo dela, “você mentiu!” Mentiu sobre ir a farmácia para ir ao mercado, isso nem tem qualquer relevância, mas eu sentia uma vontade real de dizer isso, naquele momento, eu entendi que na verdade eu queria iniciar alguma briga, alguma coisa para colocar toda aquela frustração e raiva para fora.


    Perguntei então, se a farmácia estava muito cheia e por isso ela desistiu de ir lá e como havia saído resolveu ir ao mercado, o que seria algo minimamente compreensível no meu ponto de vista; em contra partida, ela disse que não se lembrava de ter dito que ia a farmácia, que lembrava ter dito que queria apenas comprar umas coisas, eu sabia que ela havia dito que iria a farmácia e eu admito que usei essa desculpa esfarrapada para começar uma discussão com ela, falamos, aumentamos o tom de voz e com pouco, estávamos aos gritos e ofensas; para tudo o que eu dizia, ela mais me cortava do que me respondia, sem contar que durante a discussão eu precisava ficar caçando ela pela casa toda, assim que entrei no quarto, ela simplesmente esperou que eu deixasse a porta livre para passar, em direção a cozinha como de costume.


    Assim que ela saiu do quarto, eu respirei fundo e olhei para o teto, tentando acalmar o coração que batia em disparada, sem o sucesso esperado, eu fui em direção a cozinha também, aquela discussão ainda não estava acabada, eu tinha muita coisa engasgada para falar, cheguei a cozinha continuando do exato ponto onde eu parei, respirando mais entre as palavras, tentando manter a calma, com o coração ainda acelerado e enraivecido eu olhei ela se afastando em direção a sala e num impulso, fui até a pia e peguei a caneca onde eu havia quase bebido o meu café com leite e num movimento quase automático, atirei ele contra a cabeça dela, a força foi tamanha que o objeto se estilhaçou ao entrar em contato com a nuca dela; ela não teve tempo de gritar, ou gemer, ela já caiu desacordada, mas não estava morta, no entanto naquele momento o meu coração se acalmou, começou a bater mais devagar e a minha respiração havia voltado ao normal, olhei ela no chão enquanto o sangue que escorria da cabeça dela corria entre as partes mal rejuntadas do piso, eu olhei fixamente para ela, naquele instante o celular dela vibrou no bolso da calça, resolvi pegar para ver quem era, poderia ser alguém esperando alguma mensagem, ou ligação, quando abri a tela do celular havia uma mensagem, um amigo que estava agradecendo pelo encontro no exato momento em que ela disse estar indo a farmácia… Naquele momento, eu senti uma certa satisfação ao vê-la no chão e desacordada.


    Voltei para a pia e ao lado dela havia gaveta dos talheres, onde eu peguei uma faca de cortar carne, fui em direção a ela, achei que era prudente terminar o trabalho, por efeito de reduzir a bagunça, eu arrastei o corpo dela até o banheiro e decidi terminar o processo cortando o pescoço dela e em seguida liguei o chuveiro… Ela ainda está num canto do banheiro e apesar do mau cheiro, a quarentena tem sido mais sossegada desde então...


 

A ultima ligação




    Eu podia o barulho de sirenes lá fora vindo ao longe, sabia que vinham na minha direção e alguma coisa dentro de mim me dizia que vinham para mim e que tinha motivos para isso, mas, eu não conseguia me lembrar o real motivo para isso. Me vi no chão, com a visão ainda embaçada e com a visão turva, olho em volta e vejo uma garrafa vazia, de um pretenso uísque barato e acredito que isso já explique a minha falta de memória. 


    Na verdade, eu nem mesmo reconheço o ambiente em que estou, mas a julgar o a mobília e o cheiro forte impregnado de cigarro, eu estou num quarto barato de um motel barato e ou eu estou fugindo de alguém, ou eu estou aqui com alguém, mas não lembro e nem percebo a presença de ninguém, me apoio na cama box que está molhada, concluo que seja suor, afinal de contas por estar num quarto de motel, talvez eu tenha suado bastante. 


    As sirenes se aproximam mais, sem olhar em volta eu me dirijo a porta do quarto que dá para uma garagem, deve ser umas nove da manhã, eu olho através das grades da garagem e o movimento parece o mesmo um carro dos mais recentes sai de uma das suítes mais caras, enquanto isso um carro mais simples entrar na suíte em frente a minha, tudo parece estranhamente normal, volto para o quarto para vestir as minhas  roupas, minha vista já está melhor e a cabeça também, mas a memoria ainda está sob uma névoa escura.


    As sirenes estão cada vez mais próximas... Ao entrar novamente no quarto, eu sou surpreendido ao olhar para a cama e ao reparar que o molhado que antes eu acreditava ser suor, na verdade se trata de sangue mal limpo, limpo as pressas, meio sem habilidade para isso; me apresso para procurar as minhas roupas e de certa forma, eu torcia para que minhas roupas não estivessem cheias de sangue e de repente, as sirenes começaram a fazer sentido... Começo a vasculhar pelo quarto e lamento pelo meu péssimo costume de atirar as roupas pelo quarto todo antes de fazer sexo, me arrependo disso nesse momento.


    Numa fresta da cama eu encontro a minha cueca e que por sorte e ao mesmo tempo indiferente ela não está suja de sangue, mas, quem iria parar para ver a minha cueca no meio da rua? 

    Minhas calças estão penduradas no gancho da parede, acho por bem conferir os bolsos, celular, carteira, chaves de casa, confiro a minha carteira, o dinheiro, meus documentos. Meus cartões e até mesmo umas duas camisinhas, visto as calças e fecho o cinto, agora preciso achar a minha camisa; enquanto eu procuro a minha camisa, eu acho uma calcinha toda enrolada num cantinho escuro. Deveria haver alguém aqui comigo. Mas, não vejo ninguém e há sangue na cama, as sirenes começam a entrar no estabelecimento...


    Depois de uma procura vacilante, encontro a minha camisa em cima da porta do banheiro, não sei por que cargas d´água a minha camisa está ali, mas, eu praticamente salto por cima da cama para poder apanhar a minha camisa; assim que a puxo, olho para a banheira de hidromassagem... Fico imerso em uma “pseudo” realidade entorpecida... Havia uma mulher deitada na banheira sem água, e pescoço dela estava roxo, ela claramente havia sido enforcada; no exato momento em que a vejo, eu sinto a minha cabeça doer, eu resolvo me olhar no espelho do banheiro, o sangue seco desenhava uma trilha entre a minha sobrancelha e o meu queixo, o uísque deve ter tirado o gosto ferroso da minha boca e com certeza esse deve ser o sangue que vi na cama.


    Eu escuto os carros de polícia freando em frente ao meu quarto, é mais do que um, julgo ser desnecessário, já que estou sozinho, tenho um pensamento que me faz olhar as ligações do meu celular, a ultima foi para o 190... Enfim, tudo se reconstruiu em minha memória, eu liguei para a polícia, para denunciar a mim mesmo e novamente ao olhar para a moça na banheira, lembro que ela não é a primeira, mas, liguei para a polícia na intenção de fazer dela a última. Deixo o dinheiro do pernoite em cima do móvel ao lado da cama e ando em direção a garagem, assim que levanto a porta da garagem, os policiais apontam armas para mim, mostro que estou desarmado e me deito no chão. Sou colocado no banco de trás da viatura e me levam embora, ao sair do motel, grito para que, estiver na cabine da recepção que o dinheiro está no quarto.

 

PÁSSAROS

  PÁSSAROS      Os pássaros estão inquietos no céu e isso sempre me preocupa, costumo pensar que eles sempre sabem um pouco mais do que a ge...